29 de abr. de 2008

A Sampa das Perversões Imorais


Há quase três décadas, Caetano Veloso cantava, acompanhado da melodia suave do samba, que seu coração se alterava ao cruzar a Ipiranga e a Avenida São João. Se composta hoje e fizesse referência aos mesmos endereços, Sampa teria grandes chances de ser uma canção eletrônica picante, folheada de samples de gemidos femininos histéricos e respirações ofegantes. E seria eleita como hino de certo tipo de estabelecimento que criou raízes na região central de São Paulo: os cinemas pornôs.

Com o fechamento do Cine Marabá em agosto passado por tempo indeterminado para reforma, o chamado Centro Velho da capital passa a não ter mais nenhuma casa destinada àqueles que procuram os novos sucessos de Hollywood na telona. Todas as salas que resistiram às mudanças da cidade com o passar das décadas (parte foi transformada em estacionamentos ou templos evangélicos), se dedicam hoje à exibição de filmes cujos títulos já entregam o conteúdo, como As Colecionadoras de Sêmen, Perversões Imorais ou Quase Virgens.

Quem deseja penetrar no mundo dos cinemas pornôs da região central vai desembolsar uma quantia que varia de 5 a 10 reais – estudantes têm direito à meia-entrada na maior parte das casas. Contudo, o que se passa na escuridão dos ambientes vai além da mera apreciação das performances carnais entre atores e atrizes – e às vezes, objetos diversos ou até mesmo animais – na tela. Se no circuito tradicional de salas a pipoca é permitida, no pornográfico vale desde a masturbação individual até surubas que causariam inveja aos tempos mais liberais da Roma antiga.

O público predominante é de gays e simpatizantes nas casas do centro. Mulheres, quando aceitas nas salas (algumas restringem a entrada do público feminino), são garotas de programa ou esposas/ namoradas/ acompanhantes que se tornam objetos de fetiches. Um deles gera um conceito interno dos cinemas pornôs: os Gaviões, homens escolhidos a dedo por quem trouxe a moça para transarem com ela. A fila para participar da prática pode ultrapassar uma dezena. O prazer do marido é unicamente visual, de puro voyeur.

Há também os casos particulares, como o do senhor que veste-se em trajes femininos a apenas dança de forma libidinosa para seu acompanhante com o intuito de sentir-se uma mulher; ou o do já sexagenário que cobre o rosto com um pano em busca de discrição – e tornou-se uma das figuras mais conhecidas da sala em que é cliente.

Quem conta essas histórias com rigor de detalhes é Paulo Alves, que há cinco anos ronda e distribui camisinhas e informativos por cinemas, saunas e outros focos de público gay como agente do Projeto Cidadania Arco-Íris HSH (Homens que fazem Sexo com Homens), idealizado pela Secretaria Municipal de Saúde com o objetivo de orientar a população homossexual a como se prevenirem contra o HIV e outras Doenças Sexualmente Transmissíveis.

“Os homens que vêm em busca disso são em grande parte trabalhadores e honestos. Há desde aquele que aparece só para descarregar depois do serviço e bater uma punhetinha. Outros, com família constituída, vêm em busca de realizarem suas fantasias, fetiches, taras”, conta Paulo, que antes de ser admitido no projeto, passou por um treinamento de seis meses junto a psicólogos ainda passa por processos de capacitação uma vez por mês.

O perfil da clientela varia de cinema para cinema. O Cine D. José, por exemplo, cobre uma fatia de público que é predominantemente de homens já calvos ou de cabelos brancos, acima dos 50 anos. No Cine Art Palácio, o perfil de idade e classe social não são facilmente identificáveis – em sua área privativa, em frente à entrada, a bicicleta estaciona ao lado de uma Harley Davidson servem como prova. Já no Cine Roma, a garota que passa pela catraca sem pagar e que a cada passo deixa à mostra sua roupa íntima rosa – culpa da saia tamanho infantil – deixa claro que, ali, mulheres são permitidas e desejadas.

Difícil é saber o que se passa nos bastidores de cada uma das casas. Em cinco dos seis estabelecimentos visitados, os funcionários anunciam logo de cara que são proibidos de fornecerem informações. As explicações, quando expostas, são confusas, e, no fim, todos recorrem a uma justificativa padrão: “Ordens do local”. Um mezzo-homem, bilheteiro do Cine Cairo, localizado na sugestiva Rua Formosa, deixa escapar que há garotas de programa dentro da casa. Ao perceber que falou mais do que devia, recusou-se até mesmo revelar o valor do ingresso da sessão.

O único disposto a falar é Humberto Letto, gerente do Cine Saci. Homem de calvície avançada e de aparência serena, ele já está há 19 anos no ramo do entretenimento da por assim dizer sacanagem, e desde 1999 ganha a vida tomando conta da burocracia, finanças e 15 empregados do estabelecimento, que antes já funcionava como uma sala de exibição de filmes lado b de artes marciais, localizado na Av. São João.

Segundo Letto, 97% do público da casa é masculino, entre 18 e 40 anos, e de maioria, homossexual. Alguns são clientes cativos, que desfrutam do local de 3 a 4 vezes por semana. Mulheres evita logo na porta (“É para não causar tumulto lá dentro”). E a medida tem resultados satisfatórios: agressões são praticamente inexistentes, diz. A maior parte dos problemas internos é relacionados a usuários de drogas e pequenos furtos – ambos reduzidos com a adoção de um funcionário há muito esquecido nas modernas salas atuais, o lanterninha.

No escurinho do cinema, acontece o básico no diz respeito a práticas sexuais homossexuais – masturbação e práticas orais são as preferidas. Os ‘finalmentes, na maior parte das vezes, são reservados para os banheiros. Por isso, a higienização é constante, chegando a quatro vezes por dia nas cabines. Mas mesmo assim, o odor característico é forte, perceptível a metros de distância, misturando-se com o cheiro de aromatizante barato do salão, que passa por uma limpeza geral quando as luzes são acessas e o filme em exibição pára pela única vez no dia.

As informações fornecidas por Letto são diversas, que vão desde números até causos que se passam entre as quatro paredes de dimensões generosas do Cine Saci. Mas ainda assim, são poucas para compreender o que são os cinemas pornôs da região central de São Paulo - um mundo que pode por sua riqueza render análises profundas em estudos psico e sociológicos, mas fechado para o mundo exterior por seus próprios líderes, os incomunicáveis donos das casas. Sampa poderia também alterar visões embaçadas. Mas, por ora, ao cruzar a Ipiranga e Av. São João, outro membro masculino é que irá se exaltar.

Gustavo Silva é um vagabundo (ponto).

4 comentários:

Anônimo disse...

nossa, gustava...muito bom o texto..jornalismo de "fôlego", como dizem...O androceu anda muito bem, com posts assim...

Anônimo disse...

opss...Gustav"O"...rs..mal.

Anônimo disse...

Bela reportagem.
Só não entendi essa história de "gaviões da fiel".

Anônimo disse...

Gustavo, muito legal mesmo, grande idéia e excelente texto.