24 de abr. de 2008

Galopar eu próprio





Na página oitenta e sete da edição que tenho aqui em mãos de Ana Karênina, romance escrito por Tolstoi, pode-se ler:

Ana Arcádievna lia e compreendia o que lia, mas o desejo que ela própria tinha de viver era grande demais para se interessar pela vida dos outros. Se a heroína do romance tratava um doente, Ana tinha desejos de andar em passos leves pelo quarto do enfermo; se um membro do Parlamento pronunciava um discurso, ela própria desejaria tê-lo pronunciado; se Lady Mary cavalgava atrás de sua matilha, irritando a nora e a todos assombrando com a sua audácia, Ana ambicionava ser ela própria a galopar. Mas nada tinha a fazer! E lá ia revolvendo nas mãos a espátula de cortar papel e prosseguindo na leitura.

Diferente da abordagem possível e, talvez, a mais “certinha” que se possa dar ao trecho – a de que ele nos indica que a boa leitura de um bom livro é capaz de nos levar para mundos diferentes, por meio de uma viagem mental e espiritual pelo mundo da ficção, que, por sua vez é um mundo maravilhoso e blá, blá, blá – não me anima nem um pouco falar disso.
Ana Arcádievna, ao ler, em estado de excitação, na verdade nos faz pensar sobre o artista de um modo geral. A ação do artista. O fazer artístico em oposição à postura passiva do público.

Veja que, mais do que se colocar no lugar da personagem, Ana não se satisfaz com apenas o “colocar-se imaginando”; angustia-se ao perceber que sua satisfação aconteceria com o caminho inverso: imaginar e agir (colocar-se). Ana ambicionava “ela própria” a galopar. É diferente de apenas contentar-se com uma inserção imagética e subjetiva no papel da personagem. Ana, assim como o artista, e diferente do que se pode pensar, é um sujeito que convive vinte e quatro horas por dia com um estado de angústia, justamente por saber de suas limitações com relação à sua ação no mundo. Apenas imaginar não é suficiente. É como se o artista atingisse o orgasmo.

Daniel Piza, em seu site, diz que não se conforma com a atual situação dos pintores contemporâneos. Estão, segundo o jornalista, apagados, enfraquecidos, perdendo espaço para os happenings, o vídeo-art, as performances, etc. Piza confessa que sente saudades (!?) do tempo em que os pintores eram mais reconhecidos.

Não que o pintor não seja alguém que queira interpretar, registrar, criar mundos inexistentes, provocar reações, etc. Mas, por mais que toda sua potencialidade estética e todo o seu conhecimento permitam a ele se expressar e construir linguagens e códigos, sua arte é limitada. Limitada, aqui, do ponto de vista material mesmo. Não digo limitada no sentido de que ela seja fraca quando pretende provocar o público (e provocar aqui no sentido de lhe perturbar e lhe causar sensações). Mas é que o artista de hoje, me parece, quer, “ele próprio galopar”, assim como Ana. Ora, não é incomum hoje vermos obras de arte “acabarem” porque, no caso, o próprio artista acabou. Se o cara dedicava-se a realizar, em galerias de arte, performances nas quais ele se inseria como “parte da obra”, não é de se estranhar que quando ele morreu, sua arte também se escafedeu. Veja bem: a obra materialmente se escafedeu, não sua mensagem! Mas, também agora, a forma é fundamental. A forma também passou a ser a mensagem! E acho que isso vale pra muita coisa. Jornalismo, inclusive. Música, claro!

A preocupação que me atormenta sempre é a seguinte: como começarmos, lentamente, a deixar de sermos apenas leitores, telespectadores, observadores, apreciadores de arte (e compradores), para passarmos a um estágio de fato criativo? Não que criatividade não seja fundamental para qualquer bom observador, principalmente para aqueles que se postam no lugar de críticos culturais. Mas é que esquecemos de nosso lado que mais chega perto da pureza do estado criativo: a faceta artística que, equivocadamente é atribuída somente àqueles que possuem o “dom”! Bobagem!

Talvez falte audácia. Motivação? Creio que não.

Falta-nos galopar por nós mesmos.






P.S.: Mas, por favor, não saiamos por aí dizendo que o nosso Padre Mary Poppins, que saiu voando por aí, sem saber como usar o seu aparelho de GPS, foi alguém que saiu "galopando" por si próprio.

2 comentários:

Zine Qua Non disse...

Como sempre, um ótimo texto. E quer saber, eles estão melhorando bastante. Sua capacidade de argumentação está maior e como usa as palavras está mais claro.

Parabéns pelo trabalho!

E concordo contigo quando diz que falta vontade de fazer, pois as coisas estão aí.
Motivação? Eu sempre recebi cobranças e estou aqui, firme e forte, tenho até um zine feito pela motivação de ver um trabalho legal e a possibilidade de divulgar minhas idéias por um meio diferente, sem ser virtual.

Até hoje já recebi vários e-mails, cartas e pedidos pessoalmente. Fiz amizades por meios "antigos".
E olha que foi só querer.

Tudo é arte. Basta saber usar seu tempo e as ferramentas oferecidas: cérebro e vontade.

Zine Qua Non disse...

outra coisa: sou fã da Mary Poppins...
Queria uma bolsa igualzinha a dela!