Acordei às 5h00, para tomar aquele que eu já tinha certeza que seria meu último banho nos próximos dias – e, de fato, foi mesmo. As mochilas já estavam arrumadas e separadas: uma, com toda a tralha trazida do Brasil, e outra com meus suprimentos para a marcha: câmeras, um caderno de capa dura, um caderninho comprado em Srebrenica, caneta, gravador, uma camisa, uma cueca, um par de meias e uma calça de ginástica. No corpo, a camisa mais leve à disposição, uma calça de ginástica, óculos e meu all-star nos pés. Não era o ideal para andar 120 quilômetros, mas eu não tinha muito mais opções.
O café da manhã seria servido às 6h30, então fui procurar meu transporte com o que tinha no estômago: uma pizza, uma panqueca de chocolate com sorvete e uma coca-cola, ingeridos na noite anterior. Eu não tinha comprado nenhuma comida, nem mesmo uma garrafa de água mineral. Àquela hora, seria impossível conseguir algo. Além do mais, uma pequena aglomeração já se formava no local combinado onde sairia o ônibus. Não havia tempo para mais nada, apenas pagar o hotel e arrumar um lugar.
Eram quatro ônibus ao todo. Às 5h40, pouca gente tinha entrado nos veículos. A primeira coisa a fazer era achar alguém que falasse inglês para me explicar o que eu deveria fazer para conseguir um lugar. Com algum custo, encontrei um rapaz, que falava pouco, mas o suficiente para mim: eu devia assinar meu nome, cidade e data de nascimento em uma lista que estava circulando, e pegar uma espécie de credencial para entrar. Cinco minutos depois, eu já estava no ônibus, sentado ao lado de um adolescente de uns 16 anos que não entendia nada do que eu dizia.
A viagem até Nezuk durou 40 minutos. Ou melhor, a viagem até o início de uma estradinha de terra e pedra que levaria a todos até Nezuk durou 40 minutos. O resto do caminho teria que ser feito a pé, porque seria impossível os ônibus trafegarem por aquele lugar estreito, que já estava um caos: pessoas e carros subindo, carros descendo, e uma lama que dava pistas que havia chovido na noite anterior.
Ao descer do ônibus, um grupo de jovens (duas meninas e três meninos, nenhum com mais de 18 anos aparente) veio em minha direção. Um deles falou, em inglês:
-Se você quiser, pode ficar com a gente.
Era tudo o que eu precisava, um grupo. Não pensei duas vezes, e segui com eles os primeiros passos de uma caminhada que duraria 20 minutos. Pelo menos foi o que eles haviam ouvido e repassado para mim.
Eu só conversava com Ramo, um dos rapazes do grupo – os outros não entediam inglês, e conversam entre eles sem dar muita atenção a mim. Todos estavam participando da marcha pela primeira vez. A razão para tal era aquela que a organização do evento esperava de todos: chamar a atenção do mundo para Srebrenica. Ramo e sua turma tinham mais um motivo para participarem: a aventura em si, de estarem fora de casa para percorrerem um caminho que nem eles tinham a noção exata – e muito menos eu.
Entre risadas e papos exaltados, Ramo foi desviando suas atenções para o seu grupo, e eu me isolava deles. Poucos minutos depois, alguém do meu lado, em inglês claríssimo, disse:
-Você estava no ônibus de Tuzla, né?
-Sim, sim.
-Eu me chamo Jonas. Eu vi que você parecia um pouco perdido e precisava de alguém que falava inglês no ônibus. Você já conseguiu o que queria? Está tudo certo?
-Sim, sim. Na verdade, eu queria saber o que eu precisava fazer para entrar no ônibus para vir para cá.
-Bom, se você precisar de alguma coisa, é só pedir. Estou eu e mais três amigos, e mais aquele homem que está logo ali na frente.
Jonas Engelbreth é alemão, nascido em Berlim, e estava na Bósnia desde dezembro de 2008, fazendo trabalho social
Eu, sem fumar, não conseguia sequer conversar direito. Estava com uma mochila de pelo menos 12 quilos nas costas e outra de dois na frente, subindo um caminho que não dava pistas de acabar, suando como um maratonista graças ao céu poético, sem nuvens, e com um sol de rachar, coberto em alguns momentos pelas árvores que estavam por todo o lugar. E a marcha nem havia começado ainda.
-Mas o que você está fazendo aqui?, Jonas me perguntou. Expliquei o de sempre, adicionando à explicação que havia sido convencido a estar ali por uma pessoa que eu conheci em minha primeira visita a Srebrenica – a pessoa que iria levar meu fardo de 12 quilos direto para a cidade e ia me deixar mais livre, leve e solto.
-Você deveria falar com uma das meninas que está aqui com a gente, a Sarah. Ela também está escrevendo um livro.
Sarah não estava à vista. Em compensação, um dos amigos de Jonas nos alcançou. Era Jonathan, ou simplesmente John, como ele mesmo se apresentou. Logo de cara, John me chamou a atenção. Provavelmente eu era o único brasileiro naquela caminhada, mas ele era, certamente, a única pessoa usando uma camisa escrita “Brasil”.
John também era alemão, e estava na Bósnia desde fevereiro, também fazendo trabalho social na periferia de Tuzla. Antes de chegar ao país estava na Inglaterra, mais precisamente em Brighton, estudando e morando com a namorada, que, adivinhe, era brasileira, filha de pai inglês, e vivendo há uns bons anos na Europa.
-Mas e vocês se comunicam em que língua?, perguntei.
-Não há língua para o amor.
O humor britânico encontra o humor brasileiro. E eu tinha acabado de encontrar um cara que valia à pena tomar umas cervejas junto.
Um comentário:
Tô gostando dos seus textos da Bósnia, guss. Continua colocando coisa aí.
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