A volta do fenômeno, a lenda renasce, um ser iluminado! Frases repetidas à exaustão, desde o ultimo domingo, sobre aquele que veio para nos redimir: o eterno Ronaldo.
Depois de tantas dificuldades com joelhos, louras jogadoras de futebol, casamentos mal sucedidos, baladas e travestis; eis que uma estrela volta a brilhar. E justo contra o meu Palmeiras, que vencia por um a zero o maior clássico do mundo contra o Corinthians até que, aos quarenta e sete do segundo tempo, veio a cabeçada certeira do craque. Que alegria! Kleber Machado vibrava; Arnaldo vibrava; a televisão relampejava em replays infinitos, a torcida corintiana derrubava alambrados; até os palmeirenses aplaudiam; o Brasil ejaculava junto a Ronaldo. Eis que ressurge do pó nossa alegria de viver, de sermos brasileiros.
Quanta besteira! Não nego que meu sangue alviverde (e um pouquinho parcial) se remoeu com o empate, sobretudo por um gol nos acréscimos, mas me recuso a aceitar o que me dizem desde o ultimo domingo. Que Ronaldo foi um excelente jogador, nunca haverá dúvidas; que o fenômeno foi casca grossa ao ter de superar duas lesões para voltar a jogar, quem discute? Mas que ele seja, assim, um santo, isso é outra coisa.
O fato é que a reconstrução do fenômeno vem de longa data, cada setorzinho da mídia colocava um tijolo nessa parede, e a publicidade e o Marcelo D2 compunham o hino daquilo que seria o dia do retorno! Alguém, afinal, tinha dúvidas sinceras de que Ronaldo voltaria a jogar bem depois de todo esse investimento? Alguém aí pensa que ele ia querer entrar para a história como um ex - melhor do mundo junkie e comedor de travestis, seja lá o que tenha acontecido naquela noite? Não. O jogador já entendeu há muito tempo o quanto sua imagem é valiosa, e o dia do renascimento, meus amigos, chegaria mais cedo ou mais tarde. Ah se chegaria!
Desmerecer o fenômeno, nunca. Afinal em pouco mais de sessenta minutos e dois jogos, ele fez muito mais do que o esperado: driblou bonito, se posicionou bem (aliás, como é de seu feitio), mandou uma no travessão que - além de quase matar o seu Giuseppe do coração - confirma sua capacidade implacável de acertar um gol, seja de onde for. Mas estamos falando de um ser humano ou de um X-Men?
A TV quer a segunda alternativa, vide a lambança que fizeram repórteres, narradores, comentaristas e todos os programas que se possa imaginar. Na Band Luciano do Vale gritava emocionado “Deus existe, Deus existe”, Kleber Machado, o famoso Galvãozinho, não ficava atrás com seu puxa-saquismo global, e Arnaldo César Coelho foi o campeão ao dizer que o juiz fora “insensível” ao dar cartão amarelo para Ronaldo, afinal era “um gol histórico para o futebol mundial”. Bom, eu realmente não sabia que os árbitros tinham que ser sensíveis, achava que deveriam ser frios e manterem a disciplina do jogo, mas essa é uma característica do brasileiro: abrir exceções. Afinal de contas era o Ronaldo, o Fenômeno, o gol da volta, a alegria de se tirar a camisa depois de um acontecimento tão esperado, o tesão de se derrubar um alambrado, o eterno carnaval. A reportagem do Fantástico, no mesmo dia, confirmou toda essa devoção, afirmando que o jogador era mesmo iluminado, e jogando um efeito de luz vindo do céu sobre as imagens de Ronaldo na tela (o que, cá entre nós, foi uma coisa bem piegas). Os mesmos que trataram de destruir a imagem do ídolo, bisbilhotando sua vida pessoal, agora reerguiam a lenda.
O homem, então, tornou-se mais importante que o time, mais importante que o clássico, mais importante que o próprio futebol. A equipe do São Paulo pagou o maior fiasco ao perder para o Mogi Mirim, ex-lanterna do campeonato, por dois a um, mas quem se importa? O Fenômeno voltou! Felipe fez uma cagada homérica que levou ao gol de Diego Souza, mas quem se importa? Ronaldo marcou! Keirrison, artilheiro do campeonato, já entrou para a história do clube palmeirense pelo desempenho em começo de temporada, e vai logo e infelizmente para o exterior, quiçá para a seleção um dia, mas e daí? Ronaldo foi melhor, pelo menos foi o que disse a Folha de São Paulo com um inexistente “duelo de craques”, um tipo de competiçãozinha particular que até os próprios jogadores desconhecem, só a mídia mesmo que entende. E mais uma das boas, o salário dos deputados vai aumentar de novo, mas quem liga? O futebol brasileiro renasce!
Nesse espetáculo, a parte que cabe aos manda-chuvas eu compreendo, mas e quanto ao brasileiro que assiste ao jogo e derrama lágrimas sinceras, o que tira de tudo isso? São rios de dinheiro para um lado, e felicidade e esperança para o outro; recuperamos nossa auto-estima, nossa brasilidade; e a mídia, os patrocinadores, o Marcelo D2, fazem grana, muita grana. Essa é uma troca que se faz por meios turvos, sem acordos, repentinamente, e sobretudo desigual.
Preocupa-me muito o efeito que tem esse escambo, essa compra que fazemos de modelos imagéticos tão bem esteticizados e personificados, esse alívio por uma coisa que não sabemos direito o que é. Bom, mas a vida continua como sempre continuou, vamos todos sentar na sarjeta e chorar, é uma alegria ser brasileiro, e que Ronaldo abençoe a todos.
Por Otávio Table Silvares, publicando religiosamente sua coluna bianual
Um comentário:
E digamos Amém!
Agora "sério": O único jogador de futebol santo se chama Gianluigi Buffon e atualmente defende as cores do Arsenal Hotspur nas purgas ciriloelenvescas.
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