5 de fev. de 2008

O mundo louco e o louco-mundo (parte I)

O mundo está dentro de seu Verdi, que, por sua vez, está dentro do mundo. Mas um não suporta mais o outro


Andamos pelas ruas, a caminho de algum lugar e sempre com um objetivo em mente. Chegar a um destino, por exemplo a faculdade, o trabalho, a casa de um amigo, etc, etc. O tempo cronológico nos faz de escravos, o que já se naturalizou em nossa sociedade. Todo mundo precisa fazer algo e, mesmo aqueles que se dizem desocupados, também têm uma finalidade, seja caminhar para qualquer lugar, para passear mesmo, seja para encontrar um banco de uma praça e descansar. É cada vez mais raro conhecermos pessoas que possam se dedicar, exclusivamente, ao pensamento. “Como assim?”, o leitor perguntará. “E os filósofos, os poetas, os professores, enfim?”. De fato, são pensadores. Dedicam-se, é verdade, à reflexão sobre diversos problemas, apóiam-se na lógica, nas metodologias, na razão...Desenvolvem teorias, conceitos, identificam paradigmas velhos e novos, solucionam equações, exploram a imaginação para compreenderem a realidade. Entretanto, este grande grupo de pensadores contemporâneos não está livre do mundo acadêmico que os cerca. São profissionais, seguem normas, são pagos por isso, aposentam-se. Muitos ficam presos a um mundo tão teorizado, que a coisa mais simples do mundo real parece-lhes um absurdo, tamanho é o choque entre teoria e prática.
São raros, portanto, verdadeiros pensadores. Que sacrificam qualquer carreira possível numa academia, não para poderem se dedicar exclusivamente ao livre pensamento, mas porque simplesmente o mundo padronizado não satisfaz a eles. Ou melhor, este mundo não se satisfaz com este tipo de pessoa, que é profundamente decepcionada com a realidade.Sim, como numa espécie de trauma, a realidade o decepciona e o agride, levando-o a questionar tudo.
Quando, então, estamos na rua, pensando em nós mesmos e, de repente, somos abordados por uma figura dessas, que, desesperadamente, começam a nos falar de grandes problemas da humanidade, revelam seus sofrimentos e dizem que os culpados são o Estado, Bush e o demônio, despejam suas idéias, muitas vezes utópicas e violentas, mas não por isso incoerentes e sem sentido, logo a taxamos de louca. O conceito de loucura, hoje, é tão usado quanto a água que usamos no banho. Banalizou-se e, dessa forma, aquele que vive a realidade, e a contesta, assim como se choca com ela, é o louco. Loucos urbanos...Pensam ao mesmo tempo em que passam fome. Pobreza... Que outro pesquisador conseguiria ficar tão próximo assim de seu objeto de estudo?

...


“As raivas, as farras, a loucura, de que sei todos os ímpetos e os desastres – larguei meu fardo inteiro. Vejamos sem vertigem a medida da minha inocência”


Não são ainda nem oito da manhã quando passa, na frente do edifício Adonis, localizado na Aclimação, bairro da região central de São Paulo, um senhor magro, alto, com uma barba por fazer e os cabelos embaraçados. Tem um olhar atento, como se procurasse alguém especificamente. Suas roupas são as mesmas que o vestiram ontem e serão as de amanhã também. Com passos largos, determinado, segue em direção ao ponto de ônibus que fica em frente ao balneário do Cambuci, na avenida Lins de Vasconcelos. Antes, cumprimentou o porteiro do prédio, o dono da banca de jornal e quem mais tenha trocado olhares com ele pelo caminho. Tem sessenta anos de idade, é formado em Direito e agora está indo para qualquer lugar, carregando livros. Se conseguir, nessas andanças que terá pela frente, venderá alguns livros, catará algumas latinhas de alumínio, que serão trocadas por algum dinheiro e, no fim do dia, terá sobrevivido para, amanhã, recomeçar tudo novamente.
Seu Verdi é conhecido, pelo menos na região onde vive. É fácil de vê-lo transitando por aí, entrando em bares e fazendo verdadeiras análises sobre a situação política atual do país. Tem o costume de perguntar aos jovens que encontra em pontos de ônibus (ou mesmo dentre destes), se estão de acordo com o governo em vigência; qual livro estão lendo no momento; o que pretendem fazer para melhorar o Brasil...Além de mostrar algumas colagens que faz com fotos de revistas velhas. Certa vez explicou uma delas:

_O que você está vendo na foto?
_Um satélite?
_Isso. E pra que ele está aí?
_Bem, este parece ser daqueles que fazem expedições a outros planetas, para procurar outras formas de vida...
_Exatamente. E, agora, o que você vê nesta outra foto?
_Hum...É uma pessoa. Parece um índio, certo?
_Isso. É um índio. O homem está procurando extraterrestres! E o índio? Quem se lembra deles?

Sem dúvida, é politizado. Quem o observa com mais atenção, certamente pensará que, na juventude, foi líder comunitário, ou participou de algum movimento estudantil, ou já foi ligado a um partido de esquerda durante a ditadura militar e, portanto, já foi preso político, quiçá um exilado político em algum país latino americano! Tem vocabulário, fala firme e convincente. E, realmente, não estariam errados ao verem, de maneira estereotipada, uma pessoa tão ativa politicamente nos olhos do senhor que, hoje, passa como louco nas enormes ruas de São Paulo.


(CONTINUA)

Um comentário:

Zine Qua Non disse...

Acredito que os taxados loucos são os mais sãos que existem.
Acho que vou mudar de casa, faculdade, profissão (que ainda nem tenho), só para tentar ser mais feliz e deixar de pensar tantas besteiras e complicar tanto as coisas simples.
Aprendemos muito com pessoas que encontramos em pontos de ônibus, perto de casa nas ruas, em calçadas ou escadas do centro.
O negócio é viver e ter saúde, o restante vem junto, acredito...