Sabe, Cláudia, no final não foi tão difícil. Eu vou seguir um caminho e você vai seguir outro. Simples assim. A vida segue. Sem choro, discussão, mágoas ou carão.
Você se lembra, Cláudia, quando começamos? Éramos jovens, cheios de energia, ideias e achávamos que íamos mudar o mundo do dia para noite. Eu com meus romances explosivos e você com suas ideias revolucionárias. Hoje, Cláudia, meus romances estão por aí, nas gavetas de editores, nas pratilheiras dos amigos mais próximos ou transformados em cigarrinhos amadores. Não ria, Cláudia, pois seus manifestos não devem ter tido um final muito mais feliz. Tanto potencial Cláudia, mas para que? Hoje, adultos, somos uma caricatura de péssimo gosto daquele tempo de inocência.
Dias desses, Cláudia, achei nossa caixa preta. Você se lembra dela? Lá estão nossas nossos pequenos bilhetes de amor, nossas fotografias do tempo de faculdade, ingressos de cinema amassados e a letra original daquela serenata que toquei no seu aniversário. Tantas memórias. Mas agora tudo isso é passado, Cláudia. Tudo é passado?
Enquanto mexia nela, achei uma foto nossa com o Lobo. Eu não sei se você sabe, Cláudia, mas o Lobo se casou. Se formou, foi trabalhar, abandonou a boêmia e acabou se casando. Justamente o Lobo, Cláudia, o maior dos solteiros, aquele que afirmava aos quatro ventos que jamais seria domado, se casou. Pois é, Cláudia, ver o Lobo no altar, vestindo um terno e sorrindo foi quase uma revelação para mim. Transcendi, me tornei uma pessoa melhor. Acho.
A caixa preta havia parecido uma ótima ideia na época. Seria o nosso Porto Seguro. O lugar que voltaríamos nossos olhos quando o relacionamento saísse dos trilhos. Admito. Ela evitou que o nosso fim chegasse mais cedo. Valeu a pena?
Lembro, Cláudia, de uma briga nossa. Briga boba. Algo sobre um das minhas listas. Você nunca gostou delas, não é verdade, Cláudia? Lembro que você disse que nunca mais queria me ver e saiu pisando duro. Você não sabe, Cláudia, mas eu sempre gostei do som dos seus sapatos de bico fino pisando duro.
Naquela noite, Cláudia, eu chorei. Eu, que não havia chorado no enterro do Almeida, que havia sido o meu melhor amigo por toda a vida, chorei como uma criança assustada naquela noite. Admito. Tive medo te ter perder, Cláudia. Muito medo. Pensei até em me suicidar naquela noite. Até hoje agradeço o Renato por ter evitado que eu cortasse os pulsos. Hoje, porém, parece bobagem, mas não chorei quando você disse que não queria mais me ver e saiu pisando duro com os mesmos sapatos de bico.
A caixa me trouxe lembranças, Cláudia. Achei nossos primeiros ingressos para ver uma peça do Ibsen. Você lembra? Na época, eu tentava me passar por um intelectual metido a sabichão e você, vinda do interior estava maravilhada com o teatro dito de vanguarda. Só me lembro do final da peça você ter agarrado o meu braço e ter dito que nunca havia visto um teatro de arena. Foi lá, naquele momento, que pensei que poderia gastar o resto da minha vida com você. Sonhos, Cláudia, sempre fui um sonhador, e você, dentre de todas as pessoas, sabe disso.
Achei também uma fotografia nossa no Bar Azul. Você não deve saber, afinal deve estar muito preocupada com A Grande Questão, mas o Bar Azul fechou. Virou uma boca de traficantes de drogas que passam o dia ouvindo uns funk neuróticos. Você deve se lembrar dessa foto Cláudia. Lá estamos nos, felizes e alegres no começo do namoro. O Renato vestindo a sua tradicional camisa do XV de Piracicaba, o Almeida com o baralho, o Lobo com o seu sorriso maroto e o Eduardo com aquela barba de comunista que prometeu que jamais tiraria, mas raspou por causa da Vânia.
Você se lembra, Cláudia? Foi lá, naquela mesa no canto que demos o nosso primeiro beijo. Estávamos discutindo Habermas, McLuhan ou a defesa do Guarani. Não me lembro ao certo, pois havíamos passado um pouquinho da conta naquela tarde. Lembro das garrafas espalhadas pelo chão do bar. Lembro do perfume que você usava naquele dia de verão. Lembro que alguma coisa em seus olhos me diziam que eu deveria ter você. E não me lembro de mais nada. Só me lembro que foi lá que experimentei seus lábios pela primeira vez. E a segunda. E a terceira...
A caixa está vazia. Tomei uma decisão, Cláudia. Ao reconhecer ela no meio dos livros pensei em queimar ela, destruir o passado. Nossos beijos, bilhetes e brigas nunca existiriam. O álcool faria o favor de apagar tudo no meu cérebro. Você, Cláudia, deixaria de existir. Não seria bom se não tivéssemos nos encontrado? Nosso futuro poderia ser completamente diferente. Eu poderia ser o mais jovem escritor a receber um Jabuti e você poderia ser a primeira presidente mulher do país. O passado, porém, não pode reescrito. E se pudesse ser reescrito? Você, Cláudia, abriria mão de nós para viver uma outra vida?
Guardo a caixa no armário. Desisto de queimá-la. Ela ficará lá, Cláudia, como um templo abandonado. Um lugar onde fieis já não vão mais rezar a sua divindade. A caixa ficará lá, Cláudia, abandonada. Será o testemunho de um amor que não sobreviveu ao tempo. Um amor que pensávamos que duraria por épocas. Sabe, Cláudia, no final não foi tão difícil assim. Eu vou seguir um caminho e você vai seguir outro. Simples assim. A vida segue adiante. Sem choro, discussão, mágoas ou carão....